segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Mémorias

       Em uma postagem anterior, citei o texto Memórias de uma Vassoura, de Aderbal Bett e prometi que em breve iria comentar também sobre Memórias de um Cabo de Vassoura, de Orígenes Lessa, então, caros leitores, aqui está...

Memórias de um cabo de vassoura

      Seria longo contar tudo o que tenho passado ao longo da minha vida, desde que me arrancaram da árvore em que fui tronco e me levaram a uma oficina, onde fui cortado, torneado, mil coisas sofri, até conhecer a nova função que me reserva o destino.

       Meus irmãos de floresta, muitos cortados comigo na mesma ocasião, depois que deixaram de ser galho ou tronco de árvore para ser madeira, que é como chamam depois do serrote ou do machado, estão espalhados por esse mundo. Muitos, hoje, são caixas e caixotes. Graças a isso, têm acabado conhecendo até países estrangeiros, levando laranjas ou latas de conserva. Outros acabaram mesas, cadeiras, armários, móveis de toda sorte. Tenho primos que são portas, janelas e se contentam olhando o movimento da rua. Alguns, tão orgulhosos do tempo das folhas, quando o vento passava e assobiava no arvoredo, são hoje, apenas, soalho. Fraco destino, para quem vivia nas alturas e sonhava, na pior das hipóteses, ser, pelo menos, teto ou armação de telhado, coisa que, para ser vista, obriga o bicho homem a levantar a cabeça. Ser pisado e repisado o dia inteiro, tábua humilde de assoalho, por pés desconhecidos, de sapato sujo, é triste para quem já foi árvore e enfrentou raios e ventanias.

       Tenho visto e ouvido muita queixa pela vida afora. Mas o triste, mesmo, a suprema humilhação para quem foi árvore, é acabar caixão de defunto.

       Esse era o grande terror de meus irmãos de madeira, quando aguardávamos, cheios de inquietação, no depósito, o nosso aproveitamento industrial. Eu, que ainda era tronco, madeira sem muita categoria, pelo que notava na conversa dos homens, ficava gelado. Se pudesse, pelo menos, ser poste de iluminação, seria um consolo. Mas poste de madeira, com o tal progresso dos homens, vem perdendo o cartaz há muito tempo...

       Os homens que nos utilizam e nos utilizaram, desde o começo dos tempos, cortando, serrando, aplainando, enfiando pregos, são de uma insensibilidade impressionante. Pensam que madeira não tem alma. Para o nosso grande inimigo (o homem, não o cupim), nós não passamos de‘coisa’. Que pode ser aproveitada de mil modos, sempre para satisfazer exclusivamente ao seu egoísmo e aos seus interesses imediatos, como uma indiferença total pelo que possamos sentir.

       E ninguém pode ter idéia do que é, para qualquer de nós, depois de cortar aqui e cortar ali e desce o machado ou passa a plaina, a visão de um simples prego. Como não temos o dom de ficarmos arrepiados, o sofrimento é puramente espiritual. O prego é trazido por mãos impiedosas, é posto contra nós, em posição vertical, o martelo se ergue, desce a pancada fatal. Pan! Pan! O prego entrando... A madeira rasgando... E a ironia de saber que o cabo do martelo ou do machado é de madeira também...

      Vingança para a gente é quando o sujeito erra o golpe e acerta, não o prego, mas o dedo... É cada palavrão que a gente escuta...

     Pior, porém, do que machado, serrote e prego, destino trágico e sem conserto, é a madeira que o bicho homem utiliza apenas como lenha.

      Destino de lenha é fogo!

       [...]

                                                                                                         Autor:Orígenes Lessa

Análise da obra:
       Memórias de um cabo de vassoura, é do escritor Orígenes Lessa, em que o absurdo da natureza humana é denunciado pela voz narrativa de um cabo de vassoura, saudoso de sua morada originária. Na visão de Orígenes Lessa, o cômico e o grotesco estão na realidade do nosso dia-a-dia, marcado por uma rigidez de normas e valores que precisam ser reavaliados. Lessa faz uma alegoria muito bem humorada. Começa contando como era a vida do tronco de árvore na floresta, depois do corte e transporte, passando pela manufatura até chegar à forma de Cabo de Vassoura.
Narra na primeira pessoa, como se fosse um humano falando de seus desejos e sentimentos, conversa com outros objetos da casa, coloca apelidos como: "engole pó" para o aspirador. Trata-se de uma prosopopéia alegre e altamente crítica. De cabo de vassoura foi transformado em cavalo de pau pelo menino Mariozinho, que lhe proporcionou os melhores momentos de sua humilde vida. Seu maior orgulho foi ter recebido o nome de - Napoleão - se sentia o próprio imperador e contava suas aventuras de cavalo de pau fazendo inveja aos mais caros brinquedos importados.
     A revisão da humanidade é feita, assim, por um cabo de vassoura experiente, que introduz o seu relato memorialístico buscando as suas origens florestais e delatando sua trágica incursão no mundo dos homens na condição de utilidade doméstica. Muito tempo o cabo de vassoura observa tudo o que acontece à sua volta e forma opiniões interessantes sobre os humanos e os objetos que o rodeiam.
     A linguagem de Lessa é dinâmica, pitoresca, carregada de ambiguidade, ela mobiliza a atenção do leitor. Um dos exemplos, nas Memórias de um cabo de vassoura, que fica evidenciado esse tratamento ambíguo e irônico da linguagem, pode-se ler em: "Destino de madeira é fogo!".
    Orígenes Lessa foi jornalista, contista, novelista, romancista e ensaísta. Nasceu em Lençóis Paulista, no estado de São Paulo no dia 12 de julho de 1903 e faleceu no dia 13 de julho de 1986, no Rio de Janeiro. Nome dos mais expressivos da literatura infanto-juvenil brasileira, Orígenes Lessa, em sessenta anos de produção, manifestou uma forte consciência do valor da leitura como instrumento de transformação social. Sua obra sempre foi fiel ao sentido “humanitário da vida”, revelando ao leitor valores essenciais da natureza humana.

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